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República
Fundado em 1911 por António José de Almeida, o jornal República destacou-se pelos ideais republicanos e laicos e na luta contra o salazarismo. Nos anos 70 reflectia uma importante oposição ao regime, que não claudicou à abertura marcelista. Sendo a censura prévia uma imposição da ditadura, o República ostentava na primeira página a menção «VISADO PELA CENSURA», como acontecia, aliás, com outros jornais, também como forma de protesto, e muito do que se podia ler estava escrito nas entrelinhas; sendo que muito da contestação que se escrevia passava já incólume aos olhos míopes da censura.
Política e cultura
Sendo um diário onde a política estava em evidência, a cultura ocupava um lugar importante, oferecendo espaço regular à crítica literária e de artes plásticas, cinema, teatro, banda desenhada e música, e também social, nos suplementos «Chave 15», «Das Letras e das Artes» ou «Jornal da Crítica” ou ainda no corpo do jornal. Nos meses que antecederam o festival foi possível encontrar textos críticos sobre Godard e a nouvelle vague, a Charlie Hebdo, o Principe Valente e a Phenix (BD), o concurso da Miss Portugal, o cubismo, a crítica literária de João Gaspar Simões (o crítico literário do regime: «Os avatares ciclísticos da crítica»), o recém editado disco de José Jorge Letria, os Beatles, Crosby, Stills, Nash and Young, John Denver, John Mayall, Kevin Ayers, e outros vários músicos e discos da pop/ rock, um dossier Vilar de Mouros, um conjunto de textos dedicados ao Jazz no Cinema (por Joaquim Pedro Tavares) e um texto avulso sobre Louis Armstrong, por José Gil.
A «coordenação» do «Jornal da Crítica» era de Orlando Neves, com colaborações de Carlos Porto, Tito Lívio, Vasco Granja, Pedro Bandeira Freire.
Infelizmente, muitos dos textos não eram assinados; mas assinados foram os três exaustivos textos de apresentação do Cascais Jazz, pelo insigne Raul Vaz Bernardo, bem assim como os dois textos de crítica por Tito Lívio, uma caixa de Pedro Bandeira Freire e Fernando Cordeiro.
Um acontecimento absolutamente sensacional
A notícia do Cascais Jazz surge logo no «Chave 15» de 10 de Outubro, num artigo subtitulado «The Giants of Jazz».
Na coluna «Banda Escritá Esquerda» no «Chave 15» de 24 de Outubro, o ilustre crítico de teatro e (à altura também) de música, Tito Lívio, escreve: «I Festival Internacional de Jazz de Cascais - o maior acontecimento musical entre nós, até hoje» e «Um acontecimento absolutamente sensacional…», assegurando a cobertura do festival no República.
Na mesma página, um artigo dedicado ao Cascais Jazz, historiava «A Evolução de Miles Davis» em artigo não assinado.
Explicar o Jazz
Três dias depois, o República chamava de novo a atenção para o festival, anunciando todo o programa, e na coluna «Registador», ao lado, dava notícia de um texto de José Duarte publicado na Disco de 15 de Setembro, dissertando sobre a necessidade de desintelectualizar o Jazz, alvitrando no entanto a necessidade de «explicar» o Jazz na rádio.
O nobre selvagem de Rousseau
A «Chave 15» de 7 de Novembro, noutro artigo não assinado de duas colunas, apresentava o saxofonista Ornette Coleman, definindo-o «como o nobre selvagem de Rousseau, que apesar de não ter escola nem formação nem ajuda estava destinado a mudar o rumo de toda a história do jazz».
Vera Lagoa atrapalhada
Em curiosa nota de rodapé, a 9 de Novembro (pg. 8) o República dava conta do escrito de Vera Lagoa na coluna de coscuvilhices semanal da feminista no Diário Popular que a celebrizou, a propósito do Cascais Jazz, referindo-se provavelmente à conferência de imprensa de apresentação do festival.
Sob o título «Sumidades», e em subtítulo «Vera Lagoa atrapalhada ou as mulheres todas no jazz», citava-se a frase: «No fim da sessão João Paulo Guerra perguntou-me o que eu pensava da ausência da mulher no campo do jazz. A falta começava por mim que sempre tinha estado ausente. Fiquei atrapalhada. Mas tenho a certeza de que, nas noites de 20 e 21 de Novembro, as mulheres encherão o Pavilhão de Desportos de Cascais».
Em jeito de remate o irónico cronista zombava: «A gente interrompe, só para perguntar se, como Dona Vera diz as mulheres vão encher o pavilhão todo, vai haver um lugarzinho, pequenino que seja, cá p’ra rapaziada?»
Alma, fogo e swing
No «Chave 15» de domingo 14 de Novembro, o República prosseguia a apresentação dos músicos que iriam tocar em Cascais com um texto biográfico sobre Phil Woods (uma vez mais não assinado), que rematava: «Phil Woods é considerado um dos dois ou três melhores “altos do” Mundo, senão o melhor. As suas interpretações são – alma, fogo, swing, uma como que ingenuidade melódica e um comando completo.»
1/4 de século de jazz em Cascais
Três dias antes do início do festival, a 17 de Novembro, o República iniciava um conjunto de três textos do jovem Raul Vaz Bernardo (que haveria de ser por longos anos crítico de Jazz do semanário Expresso), sob o título de «1/4 de século de jazz em Cascais». Esta série era «dedicada … à camada de leitores, não especializada com ideias pouco definidas no papel da música de jazz no mundo actual…»
Raul Bernardo começa por questionar as correntes de opinião «mais extremas» que anunciam a decadência de todo o jazz dito moderno, ou seja, todo aquele derivado da estética bop; considerando os Giants of Jazz uma fiel expressão do Jazz moderno, «não uma moda, mas sim uma escola susceptível de uma renovação a partir da manutenção de elementos fundamentais desde que tal espírito renovador obedeça a imperativos estéticos íntegros».
A música dos Giants of Jazz era, claramente, para Raul Vaz Bernardo, superlativa e intemporal, merecendo-lhe lugar de destaque na programação do Cascais Jazz. No restante do extenso artigo de página, o cronista apresenta um a um os membros dos Giants of Jazz, Dizzy Gilespie, Thelonious Monk, Sonny Stitt, Art Blakey e, em mais curtos parágrafos, Kay Winding e Al McKibbon. Biografias, percursos, o seu papel histórico, e estilos.
Exotismo X Intensidade
O segundo texto do «1/4 de século de jazz em Cascais», publicado a 19 de Novembro, era dedicado a Miles Davis e Ornette Coleman (título gralhado: «Miles Davis oun Ornette Coleman»).
«Figura exótica», «personalidade complexa», «um artista fora do comum», «o farol mais luminoso dos caminhos do jazz dos últimos quinze anos», assim era apresentado Miles Davis. A admiração de Raul Bernardo por Miles Davis era incomensurável, e ele considera «Kind of Blue» «… uma das mais belas produções de todo o Jazz, mas a pedra de toque para a etapa seguinte do jazz…» e «Miles Smiles» fabuloso e perfeito, sem deixar de se questionar sobre os mais recentes caminhos pela pop do trompetista: «vai-se poder apreciar se MILES se vendeu a um mundo comercial ou se, como ele anda sempre àvante, o mundo da amplificação e da electrificação é um novo caminho do jazz».
Sobre Ornette Coleman o cronista ressaltava a novidade numa evolução lógica a partir da tradição, a integridade e a honestidade das propostas musicais: «… o caso de Ornette é quase que como a descrição de um jazzman clássico que com um estilo pessoal vai desenrolando a sua vida musical sempre com a mesma integridade, sem surpresas para os seus seguidores…». E comparando com Miles: «Um dia talvez se possa fazer um julgamento definitivo destas atitudes artísticas: evoluir-se pela integração em novos moldes (no caso Miles Davis ou John Coltrane) ou projectar uma frescura constante mantendo um estilo inalterável (Parker, Rollins ou Ornette Coleman». E rematava: «Com Ornette Coleman prevêem-se em Cascais momentos de grande intensidade musical…».
O Êxodo para a Europa
O terceiro capítulo do «1/4 de século de jazz em Cascais», com um subtítulo «O Êxodo para a Europa: Dexter Gordon e Phill Woods», foi publicado a 20 de Novembro, o primeiro dia do festival, e aludia ao exílio de músicos americanos na Europa, como acontecia com Dexter Gordon e Woods.
Sobre Dexter Gordon, radicado em Copenhaga, dizia: «Um grande jazzman, o mais descontraído dos tenores na linha de Lester Young», lamentando que o saxofonista nunca tenha obtido nos Estados Unidos o reconhecimento merecido («sobretudo devido à extraordinária publicidade e promoção que recebiam os discípulos de Lester Young de raça branca Stan Getz, Zoot Sims, Al Cohn e outros…»); o que teria contribuído para a sua migração para a Europa. Musicalidade, calor, classe, (obras de) grande envergadura musical, swing e emoção que, ainda assim, não teria logrado atingir nas suas gravações europeias, devido talvez ao «ambiente mais recatado, desafogado e pacífico, como o europeu». As gravações do Montmartre de Copenhaga, com a secção rítmica de Niels-Henning Ørsted Pedersen e Kenny Drew são referidas como o melhor do período europeu de Dexter Gordon.
Já Phil Woods teria emigrado por «imperativos de ordem moral», «desgostoso com o ambiente de violência da vida americana», mencionando-o como «um dos primeiros saxofonistas brancos a tocarem com um fogo autenticamente Parkeriano». Bernardo considera-o um saxofonista original e intenso, influenciado também pelo modalismo de Coltrane e o músico americano com mais sucesso na Europa.
Em Cascais, concluía, «teremos a oportunidade de apreciar dois casos europeus: «a modéstia de um grande músico que nem sempre tem acompanhantes privativos, o solitário Dexter Gordon e a espectaculosidade de um grupo em todos os sentidos, o do saxofonista Phil Woods».
Exposição, solos, reexposição e coda
No República de 19 de Novembro ainda, em caixa logo abaixo do texto de Raul Bernardo, Pedro Bandeira Freire era o autor de um enigmático artigo «Jazz em Cascais» com subtítulos «Exposição do tema», «3 solos (Instrumentos de sopro)», «1 solo (Bateria)», «Reexposição do tema» e «Coda».
Jazz, turismo e capitalismo
Uma dissensão esquerdista ao Cascais Jazz surge pela primeira vez no República numa caixa de 23 de Novembro, sob o título «Jazz, turismo e capitalismo»; numa evocação de uma entrevista de Luis Villas Boas ao Diário de Lisboa de 4 Novembro: «Escolhemos Cascais porque é a zona, na área de Lisboa onde é possível encontrar um recinto com maior lotação. Por outro lado, a realização deste festival insere-se na de promoção do turismo de Inverno».
E opinava o cronista (texto não assinado): «E assim coloca-se o Jazz ao serviço duma estrutura a que, por definição, ele se opõe, faz-se duma música revolucionária um mero produto da dicotomia compra e venda a 300 paus; importam-se meia dúzia de executantes altamente comprometidos (Miles Davis é o exemplo mais frisante, que de “Free” já nem a esperança tem); omitem-se os nomes pouco comerciais da forma última de Jazz Shepp, Sun Ra, etc.; tenta-se esquecer que o ar livre é uma realidade muito aberta; e por esta forma arma-se um festival que em vez de servir o Jazz, serve o capitalismo. Ou de como, sem o mínimo remorso, se prostitui o Jazz. »
O balanço do Cascais Jazz
O balanço do Cascais Jazz surge a 25 de Novembro pela pena de Tito Lívio; numa crítica igualmente tocada por um mesmo radicalismo esquerdista.
Tito Lívio começa: «Nunca pensámos ver tanto publico a encher totalmente o enorme Pavilhão dos Desportos de Cascais. Do público se dirá o mesmo que do de Vilar de Mouros: uma incultura musical, flagrante que acolhe melhor a espectacularidade, uma linguagem mais afim com o «pop - Miles Davis ou o jazz clássico ultrapassado definitivamente de Dizzy Gillespie e os Giants».
Miles, pop e integração
Ao referir Miles Davis, diria que o texto de Tito Lívio é contraditório. Por um lado Lívio abjecta a postura vedeta e a deriva pop e a integração de Miles Davis, e por outro não lhe poupa elogios:
«Miles Davis uma linguagem que se alarga até à pop, por vezes a abordagem de uma semelhança com o «Light My Fire» dos Doors. As interrupções bruscas do trompete de Miles, o background espantoso das congas (o ritmo afro), depois da erupção — o apaziguamento, o lirismo, uma música onde o improviso tem lugar. O paroxismo do pianista, o corpo entregue à música, quase um exorcismo, um novo rito. Do tema iniciado pelo orgão, surge o trompete como um grito súbito o definir de uma tensão que lentamente se constrói. A incursão ainda no barroco — Vivaldi e Bach, abrir-se a todas as experiências, de uma cultura ocidental e cristã. A entrada nos domínios do “rock”. Um belo trabalho do baixo: Michael Anderson e do saxofone: Gary Bartz. Miles não deu o seu melhor, inferior ao que dele esperávamos (no entanto melhor que em disco) nunca se entregou totalmente. Miles Davis: o “cool” - um rigor formal impecável, a integração do negro na cultura branca.»
Raiva e angústia
O parágrafo sobre Ornette Coleman é apologético: «Ornette Coleman: o “free”, a imagem de uma radicalização que mergulha nas motivações profundas do negro americano. Uma estética que é simultâneamente uma ética. O jazz sem regras, severo, anti-superficial, o destruir das linhas harmónicas, a arritmia. Maior inovação e profundidade que Davis. Cada instrumento improvisa. O início de um caos sonoro de extrema beleza. A destruição da noção, do conjunto, da vedeta. O deixar uma frase musical quando ela já se encontra esgotada pelo improviso. Um trabalho inventivo do contra-baixo - Charlie Haden (a autenticidade e a fidelidade às raízes) e da bateria - Leon Chandler. Com Coleman o instrumento deixa de ser um instrumento erudito, lírico, para passar a assumir a violência, um som de raiva e angústia. Ornette Coleman – as palmas (raras) para uma actuação que se impôs o máximo deste festival.»
Impassíveis
Já Dexter Gordon não tocou o cronista: «o bebop, ainda, uma técnica impecável de saxofone, um jazz que já não interessa senão como fase histórica. “Autumn Leaves” e “The Shadow of your Smile” deixam-nos hoje já impassíveis».
E se Phil Woods ainda entusiasmou Tito Lívio, no «jazz liberto das harmonias, da correcção, da melodia do bebop; ele interroga-se sobre a oportunidade das palmas do público que apenas se excitava com os solos.
E Tito Lívio concluía com a crítica ao concerto dos Giants of Jazz: «técnica impecável, mas uma técnica promovida a vedetismo, um jazz que se atém a um tecnicismo estático, que se prolonga na agonia, não correspondendo de forma alguma a uma raiz africana, a motivações sócio-políticas, um jazz neutralizado pela cultura branca, sem potencial agressivo. Fechando-se na sua estaticidade, num auto-comprazimento de um super-grupo, produto altamente rendoso de uma sociedade de consumo. Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Sonny Stitt, AI Mc Kibbon, Kay Winding e Art Blakey (boa técnica mas menos invenção que Daniel Humair), levaram o público ao delírio, forma mais acessível, final para a grande festa que pode ser Cascais 1972. A ver vamos...»
Festival mundano
E um texto tardio (5 de Dezembro), Fernando Cordeiro criticava o mundanismo do festival onde todos os notáveis, tinham marcado presença: Dr. Caetano de Carvalho (o Director do Secretariado Nacional de Informação dos últimos anos da ditadura), Zeca Afonso, Isabel Wolmar (apresentadora da RTP), Fernando Tordo, Alexandre O’Neil, Jorge Peixinho, Amália Rodrigues, deputado Pinto Balsemão, Manuel de Lima, Alexandre Correia de Oliveira, e muitos outros famosos, como se diz agora.
Miles, o dandy
E nos parágrafos seguintes discorre sobre Miles e Ornette: Miles o dandy, a vedeta, o músico ou o comerciante: «Miles é um músico em permanente estado de aperfeiçoamento e superação, que faz jazz apenas pelo gosto de fazer jazz e conquistar plateias (como a de Cascais) e só por isso. Não queiram ver mais nada (Black Power, por exemplo) por detrás dele porque não existe lá. Não tenham ilusões, meus meninos. Miles é (só) aquilo.»
O Jazz de punho cerrado
Em «Coleman, o jazz de punho cerrado», Fernando Cordeiro fala de um estaticismo, «mesmo duma “institucionalização”, agora que já vai passando algum do impacto revolucionário dos primeiros tempos do seu “free”. Que no entanto permanece ainda como espelho, (embora já os haja mais claros) duma arte, dum povo, duma revolução a fazer».
E rematava: «Para quem desceu ao fim da linha, o rei foi Miles Davis, enquanto Ornette Coleman (o grande momento de sábado e talvez não só) foi o outro bom músico, mas um bocado “morno”, porque sem a espectalularidade de Miles.
A contestação que alastrava, silenciosa
O regime estrebuchava antecipando a revolução portuguesa, e a contestação alastrava, silenciosa. Uma boa parte da juventude e da intelectualidade radicalizava-se e rompia com o cerco do portuguesismo tacanho (e contente de ser pequenino e pobrezinho) e a moral e os valores culturais putrefactos do regime fascistoide, e estava atenta ao que se passava na América (os movimentos anti-guerra do vietname), e aos ventos de liberdade e de revolução social e cultural que a própria música pop trazia com ela.
Free Jazz/ Black Power
Muito do que se escrevia tinha um cunho radical (que escapava à censura), que antecipava o que de excessivo a revolução haveria de trazer, e daí, a meu ver, também, o radicalismo da (alguma) crítica, que era mais política e social que musical. Essa crítica não era, de facto, uma originalidade nacional. O free-jazz tinha irrompido uns anos antes, revolucionando o Jazz e abrindo-lhe os horizontes estéticos e a geografia; mas continha em si um comprometimento político que acompanhava as lutas raciais e sociais nos EUA e que lhe ofereciam também um substrato teórico. Uma nova crítica musical radical surge nos EUA e na Europa, entre LeRoi Jones (aka Amiri Baraka) e Philippe Carles/ Jean-Louis Comolli (Free-Jazz/ Black Power, que teria uma tradução portuguesa em 1974), e era lida por uma franja informada.
O República oferecia-lhes espaço.
Sobre Jazz escreveram no República:
Raul Vaz Bernardo
Tito Lívio
Joaquim Pedro Tavares
Fernando Cordeiro
Pedro Bandeira Freire |
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